Você sabe quem foi o primeiro escritor da história?
Quando se pensa em literatura, grandes nomes nos vem à memória: Shakespeare,
Machado de Assis, Dostoievski, Kafka, Saramago e diversos outros. Os clássicos literários
que nos incentivaram a ler durante a infância e adolescência são as obras que caíram no
gosto dos críticos brasileiros e se perpetuaram por anos a fio, como referência literária
nacional. Todas em sua grande maioria, escritas por autores masculinos.
Essa característica literária que por décadas foi a mais valorizada, colocou a
compreensão da sociedade, o funcionamento do mundo, a visão das mulheres e suas
capacidades, todas a partir da perspectiva do homem. Visão essa que por anos contribuiu
com os conceitos de patriarcado, sexismo e machismo.
O que poucas pessoas sabem é que o primeiro escritor da história não foi Homero,
que escreveu Ilíada e a Odisséia por volta dos séculos VIII ou VII antes de Cristo. O primeiro
escritor da história foi uma mulher.
Enheduanna viveu por volta de 2.285 a 2.250 a.C, na Mesopotâmia. Princesa,
sacerdotisa e poeta, ela foi considerada a primeira autora do mundo a ter seu nome
conhecido em uma época em que era incomum que escribas assinassem seus trabalhos. Ela
compôs diversas obras literárias e sua produção inclui dois hinos à deusa mesopotâmica do
amor Inanna, o mito de Inanna e Ebih e uma coleção conhecida como “Hinos Sumérios do
Templo”.
Já no Brasil, Maria Firmina dos Reis foi considerada a primeira escritora brasileira e
pioneira na crítica antiescravista. Em 11 de agosto de 1860, na cidade de São Luís, as
primeiras páginas do jornal A Moderação anunciavam o lançamento do romance
Úrsula(1859), original brasileiro da autora, que além de ter lançado um gênero sem
precedentes no Brasil, foi a primeira mulher a ser aprovada em um concurso público no
Maranhão para cargo de professora no primário, e com o próprio salário, podia se sustentar
sozinha em uma época que isto era incomum e mal visto para uma mulher.
Oito anos antes da Lei Áurea, a autora criou a primeira escola mista para meninos e
meninas, que não chegou a durar três anos, devido ao escândalo que causou na cidade de
Maçaricó, em Guimarães, onde foi aberta.
No Brasil, a exclusão das mulheres no direito ao conhecimento se tornou lei. Ainda
em 1941, o Decreto-lei 3.200, de 19 de abril, assinado pelo presidente Getúlio Vargas,
afirmava que o Estado faria educar a infância e a juventude para a família: “Devem ser os
homens educados de modo que se tornem plenamente aptos para a responsabilidade de
chefes de família. Às mulheres será dada uma educação que as torne afeiçoadas ao
casamento, desejosas da maternidade, competentes para a criação dos filhos e capazes na
administração da casa.” (PINSKY, 2013)
Apesar de pioneiras, a literatura feminina por décadas foi suprimida. A mulher
escritora foi durante anos preterida e excluída do cânone literário. Entre os motivos para tal
apagamento, Virginia Woolf, em seu ensaio-novela Um teto todo seu (1929), identifica a
escassez de condições materiais para que ela pudesse então penetrar um âmbito há muito
constituído como um local de saber tipicamente masculino. Daí a célebre frase da autora, “a
mulher precisa de dinheiro e de um teto todo seu se pretende mesmo escrever ficção”.
No livro, Woolf cria uma vida trágica para Judith, a irmã fictícia de Shakespeare, que
ilustra de maneira didática o destino da mulher escritora, no período elisabetano (1558-
1603). A personagem Judith em sua ingenuidade, acredita dispor das mesmas oportunidades
do irmão, e a sua busca por realização artística culmina em humilhação, rejeição e suicídio.
“Ela era tão aventureira, tão imaginativa, tão impaciente para conhecer o mundo
quanto ele. Mas ela não frequentou a escola. Não teve a oportunidade de aprender gramática
e lógica, que dirá de ler Horácio e Virgílio. Apanhava um livro de vez em quando, talvez um
dos de seu irmão, e lia algumas páginas. Mas logo seus pais surgiam e ordenavam que fosse
coser as meias ou cozer o guisado e não mexesse em livros e papéis.” (WOOLF, 2014, p.71)
A suposição da autora com o destino de sua personagem não estaria muito distante
da realidade de muitas mulheres que foram silenciadas e mortas durante séculos por ter
opiniões controversas para sua época. Se a mulher elisabetana não era incentivada a criação,
tampouco era a georgiana (1714-1830), mas foi neste período que as coisas começaram a
mudar.
No século XVII, escritoras como Aphra Behn e Delavivière Manley, e, no século XVIII
com Eliza Haywood, Clara Reeve e Ann Radcliffe, por necessidade financeira ou prazer, elas
se inseriram no mercado literário e mostraram que ganhar dinheiro escrevendo era uma
possibilidade para o seu sexo, mesmo que isso significasse colocar em risco sua reputação.
Mas as conquistas não pararam por aí. Hoje as mulheres buscam por mais
representação feminina também no mercado editorial. Segundo pesquisa desenvolvida pelo
Grupo de Estudos em Literatura Brasileira Contemporânea, mais de 70% dos livros
publicados por grandes editoras brasileiras entre 1965 e 2014 foram escritos por homens.
Apenas durante a pandemia do Covid-19, que foi possível ver uma mudança no
cenário do mercado editorial brasileiro. A plataforma de autopublicação Clube de Autores,
constatou que o número de autoras passou de 34% em 2019 para 44% em abril de 2022.
Luana Vignon, escritora, sócia-administradora e publisher da Editora Miolo Mole,
que atua no segmento de literatura ilustrada, declara que “a representatividade
feminina no mercado editorial é fundamental para criar precedentes,
encorajar e romper com os estereótipos que por tantos anos funcionaram
como uma espécie de instrumento de contenção para as mulheres”.
Luana já tem dois livros de poesia publicados: "Seu herói foi embora’ e ‘Os tiros vêm
do paraíso’, além de participações em diversas coletâneas e revistas literárias. No âmbito da
literatura infantil, ela publicou como autora: Demonho (ilustrações Thaís Arcângelo), Garoto
Avatar (ilustrações Caeto), Abichodário (ilustrações Marco Jacobsen) e Isto não é uma
cenoura (no prelo, ilustrações Caco Galhardo), todos pela Editora Miolo Mole.
Começou a escrever desde criança e a possibilidade de fabular e criar histórias se
tornou vital para a autora, foi daí que o desejo de fazer livros surgiu. Para a profissional,
editar e adentrar o universo de outras pessoas também é uma forma de escrita.
Ela afirma que as mulheres sempre produziram muita literatura, em todos os tempos.
“No entanto, a misoginia do meio literário desencoraja muitas de nós. Assim como em outras
áreas, as grandes editoras eram e são comandadas por homens brancos e isso se refletia na
escolha dos títulos e na formação do cânone. Por muito tempo a literatura produzida por
mulheres levava o rótulo de "feminina" como uma subcategoria, mas hoje esse lugar está
sendo ocupado e cada vez mais mulheres ganham a cena de forma espetacular”.
A Câmara Brasileira do Livro confirma que cada vez mais escritoras publicam livros e
vencem prêmios de literatura, a exemplo, na última edição do Prêmio Jabuti, Luiza Romão
ganhou na categoria livro do ano com a obra Também Guardamos Pedras aqui.
Marina Franco, escritora e jornalista, destaca em entrevista que além das dificuldades
encontradas historicamente pelas mulheres, a literatura no Brasil também não é muito
valorizada. “Além de escrever livros eu faço projetos de mediação de leitura, sou jornalista,
faço divulgação, comunicação para projetos culturais, escrevo projetos, mas sobreviver só da
literatura, só de livros e lançamentos, é muito difícil, acho que é o maior desafio de todo
escritor e escritora no Brasil.”
(Foto de Divulgação da Obra “O Amor é Lilás” da autora Marina Franco)
A autora já tem três livros publicados, “As Descobertas de Paulinho na Metrópole”
(2004) e “Alberto que era Santos Dumont” (2006), ambos pela editora DCL, e sua obra mais
recente “O Amor é Lilás” (2021), pela editora Miolo Mole.
Marina conta que seu amor pela leitura surgiu com a influência da família e que
desde a infância escrevia poesias. Clarice Lispector, Lygia Fagundes Telles e a Hilda Hilst
foram suas principais inspirações e essenciais em sua formação.
A escritora acredita que hoje em dia existe muito mais representatividade feminina
na literatura, “o mundo dos escritores era um mundo muito masculino, eu citei três
escritoras que eu gosto muito mas que sempre foram mulheres muito desafiadoras e a frente
do seu tempo, que sempre tiveram que lutar muito contra esse ambiente masculino que é o
da literatura”.
Ela também reforça que essa mudança no mercado editorial tem se aberto para mais
representatividade não só feminina, mas também para o público LGBTQIAP+. Marina
afirma que o Brasil é um país de grandes escritoras mulheres, mas que ainda faltam mais
oportunidades nas editoras, nos eventos literários para escrita de voz feminina e iniciativas
para as mulheres terem mais espaço no mercado editorial.
“Acho importantíssimo as mulheres terem esse reconhecimento, esse
espaço, até para o ambiente da literatura se tornar mais igualitário, por isso que
a gente luta no movimento feminista, para que haja igualdade entre gêneros”.
Felizmente, com a evolução da sociedade, as mulheres conquistaram novas
oportunidades de trabalho, educação, mais autonomia, além de direitos garantidos
institucionalmente pela sua liberdade e escolhas.
Em 1929, Woolf escreveu em seu livro Um teto todo seu: “Dentro de cem anos as
mulheres terão deixado de ser o sexo protegido. Participarão de todas as atividades e
esforços que no passado lhes foram negados]...[Retirem-lhes essa proteção, exponham-nas
aos mesmos esforços e atividades, façam-nas soldados e marinheiros e maquinistas e
estivadores, e as mulheres não morrerão muito mais jovens.]...[Tudo pode acontecer quando
a feminilidade tiver deixado de ser uma ocupação protegida]”
Ainda não chegamos em 2029, porém, como um dia sugeriu a autora, hoje as
mulheres têm conquistado cada vez mais espaço no mundo e na literatura. Diversas
contribuições culturais e sociais surgiram quando a feminilidade foi deixando de ser uma
ocupação protegida. A exemplo temos Ada Lovelace, com a criação dos algoritmos, Maria
Telkes e Eleanor Reymond, com a criação da energia solar, Grace Murray Hopper com
Softwares de Computadores, Nettie Stevens com a descoberta dos cromossomos x e y, Hedy
Lammar com a criação da comunicação sem fio e diversas outras mulheres que mudaram o
mundo.
Na literatura não foi diferente, mulheres, autoras como Agatha Christie, Clarice
Lispector, Conceição Evaristo, Jane Austen, Cora Coralina, Sylvia Plath e diversas outras,
clássicas e novas, surgem com o desejo de criar por meio dos livros novos mundos, visões,
regras e reescrever o cânone literário, que por anos a excluíram e apagaram da história. Elas
mostraram a força da mulher na escrita, que pioneiras tornaram a literatura como
conhecemos hoje.
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